O LAVADOR DE CADÁVERES
HÁ QUASE VINTE ANOS Aderaldo lavava cadáveres no Instituto Médico Legal de Salvador, Bahia. Profissão difícil para muitos, não para Aderaldo, um sujeito simpático, amigo de todos, e que dizia não ter medo de nada, muito menos da morte. “Mau mesmo só quem faz é gente viva. Morto só faz apodrecer” – repetia sempre aos seus amigos e conhecidos.
A limpeza dos corpos era sempre realizada com o maior carinho e cuidado, independente do estado do cadáver, da comoção social ou gral de parentesco do individuo morto. Muita gente famosa ele já havia lavado. Políticos, artistas, jogadores de futebol. Mais a maioria dos cadáveres eram sempre constituídos de assassinos, prostitutas, mendigos ou homossexuais, da zona baixa da cidade, vítimas normalmente de tiros ou facadas em brigas e assaltos.
Era um fim de tarde quando Osório – seu chefe de repartição mandou-lhe um corpo vitima de bala perdida que havia chegado a poucos minutos do fim do seu horário de trabalho, e que deveria ser enterrado imediatamente, antes do anoitecer. Aderaldo achou estranho tal pedido, mas logo deu inicio os primeiros atos do seu serviço – como escolher as toalhas e os sabões, limpar a mesa, e retirar o corpo cuidadosamente da geladeira – o morto parecia à primeira vista já ter sido examinado pelo legista. Quando Aderaldo retirou a capa que encobria o corpo, e este teve um grande susto: o cadáver que estava a sua frente tinha a sua face.
Cabeça grande, bigode ralo, olhos ligeiramente puxados, pele morena e, além disso, estava com a mesma roupa que ele vestia. Calça jeans, camisa branca com o logotipo do IML, sapato de couro escuro. O susto foi tão forte que Aderaldo na mesma hora caiu para trás, pálido. Minutos depois, logo após o mal estar, levantou-se devagar. Olhou a ficha do defunto, que estava bem próximo ao tiro que o dito levara (no abdômen), e a sua surpresa foi ainda maior. O nome do morto era o mesmo que o seu: Aderaldo Miguel Pereira. A mesma idade: cinqüenta e um anos.
Começou a pensar que estava ficando louco, vendo o próprio corpo morto assim a luz dos seus próprios olhos. Nervoso, largou tudo ás pressas e saiu correndo desesperado a sua casa, logo que chega a sua rua encontra Luciene a sua mulher, ela lhe perguntou o que havia acontecido e a qual seria o motivo de tal palidez e nervosismo no rosto e nas palavras. Aderaldo ainda assustado contou toda história a sua mulher. Visivelmente estranha, com um olhar enigmático, Luciene se levantou da cadeira onde escutara a maior parte da historia e foi até o quarto do casal onde juntou todas as coisas do marido e as colocou na calçada dizendo:
– Aqui você não mora mais, não durmo com um homem morto.
Duas semanas após o fato no IML falece Aderaldo vitima de um tiro no abdômen em uma briga de bar, o assassino supostamente fora o amante de sua mulher.
João Aguiar said,
julho 26, 2007 às 12:44 am
O conto é, na minha opinião, uma das narrativas concisas mais interessantes, visto proporcionar ao autor uma liberdade inventiva ímpar. Quando li o “Lavador de cadáveres” comecei, desde a primeira frase, a imaginar o desfecho, tendo como referencial a capacidade criativa e sarcástica de Bruno. Confesso que minhas conjecturas passaram longe do final da narrativa. Isso é, a meu ver, mais uma prova de como as palavras podem, se bem dispostas em idéias dinâmicas, produzir surpresas agradáveis nos leitores.
Isolda said,
outubro 10, 2007 às 9:09 pm
Brunow,
tava devendo uma visita de gente no teu blog. Da outra vez passei pra dar só uma averiguada clínica – mas parece que o médico era do SUS e saiu tudo mais ou menos muito rápido.
Agora lendo a história de Abelardo – baiano, o infeliz – deu vontade de voltar outras vezes. A cara do blog tá melhor, embora nefasta. O que há faz condizer com teus ditos. Cadáveres, mazela, lembra-me Rubem Fonseca e seus contos sanguinários. Com trema.
Até uma próxima, contista amigo – ou seria garoto multimídia?
Beijos ao historiador mais jornalista de campina. Ou talvez jornalista historiador.
E essa também fica pruma próxima…
Isolda said,
outubro 10, 2007 às 9:12 pm
Ah.. era Adelardo.
desconhecido said,
julho 16, 2009 às 11:01 pm
as vezes também somos como pré-defuntos e as vezes como médicos medíocres e pior ainda como a esposa do infeliz…que “pre- viu” a própria morte. O pior de tudo é
que a esposa sim tem esta capacidade de matar antecipadamente com as palavras.
uiliam said,
novembro 6, 2010 às 10:43 am
gostei muinto . a vida nos enssina um pouca de verdade.