O LAVADOR DE CADÁVERES

julho 25, 2007 at 3:47 pm (Contos)

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HÁ QUASE VINTE ANOS Aderaldo lavava cadáveres no Instituto Médico Legal de Salvador, Bahia. Profissão difícil para muitos, não para Aderaldo, um sujeito simpático, amigo de todos, e que dizia não ter medo de nada, muito menos da morte. “Mau mesmo só quem faz é gente viva. Morto só faz apodrecer” – repetia sempre aos seus amigos e conhecidos.

          A limpeza dos corpos era sempre realizada com o maior carinho e cuidado, independente do estado do cadáver, da comoção social ou gral de parentesco do individuo morto. Muita gente famosa ele já havia lavado. Políticos, artistas, jogadores de futebol. Mais a maioria dos cadáveres eram sempre constituídos de assassinos, prostitutas, mendigos ou homossexuais, da zona baixa da cidade, vítimas normalmente de tiros ou facadas em brigas e assaltos.

           Era um fim de tarde quando Osório – seu chefe de repartição mandou-lhe um corpo vitima de bala perdida que havia chegado a poucos minutos do fim do seu horário de trabalho, e que deveria ser enterrado imediatamente, antes do anoitecer. Aderaldo achou estranho tal pedido, mas logo deu inicio os primeiros atos do seu serviço – como escolher as toalhas e os sabões, limpar a mesa, e retirar o corpo cuidadosamente da geladeira – o morto parecia à primeira vista já ter sido examinado pelo legista. Quando Aderaldo retirou a capa que encobria o corpo, e este teve um grande susto: o cadáver que estava a sua frente tinha a sua face.

           Cabeça grande, bigode ralo, olhos ligeiramente puxados, pele morena e, além disso, estava com a mesma roupa que ele vestia. Calça jeans, camisa branca com o logotipo do IML, sapato de couro escuro. O susto foi tão forte que Aderaldo na mesma hora caiu para trás, pálido. Minutos depois, logo após o mal estar, levantou-se devagar. Olhou a ficha do defunto, que estava bem próximo ao tiro que o dito levara (no abdômen), e a sua surpresa foi ainda maior. O nome do morto era o mesmo que o seu: Aderaldo Miguel Pereira. A mesma idade: cinqüenta e um anos.

           Começou a pensar que estava ficando louco, vendo o próprio corpo morto assim a luz dos seus próprios olhos. Nervoso, largou tudo ás pressas e saiu correndo desesperado a sua casa, logo que chega a sua rua encontra Luciene a sua mulher, ela lhe perguntou o que havia acontecido e a qual seria o motivo de tal palidez e nervosismo no rosto e nas palavras. Aderaldo ainda assustado contou toda história a sua mulher. Visivelmente estranha, com um olhar enigmático, Luciene se levantou da cadeira onde escutara a maior parte da historia e foi até o quarto do casal onde juntou todas as coisas do marido e as colocou na calçada dizendo:

            – Aqui você não mora mais, não durmo com um homem morto.

             Duas semanas após o fato no IML falece Aderaldo vitima de um tiro no abdômen em uma briga de bar, o assassino supostamente fora o amante de sua mulher.

5 Comentários

  1. João Aguiar said,

    O conto é, na minha opinião, uma das narrativas concisas mais interessantes, visto proporcionar ao autor uma liberdade inventiva ímpar. Quando li o “Lavador de cadáveres” comecei, desde a primeira frase, a imaginar o desfecho, tendo como referencial a capacidade criativa e sarcástica de Bruno. Confesso que minhas conjecturas passaram longe do final da narrativa. Isso é, a meu ver, mais uma prova de como as palavras podem, se bem dispostas em idéias dinâmicas, produzir surpresas agradáveis nos leitores.

  2. Isolda said,

    Brunow,
    tava devendo uma visita de gente no teu blog. Da outra vez passei pra dar só uma averiguada clínica – mas parece que o médico era do SUS e saiu tudo mais ou menos muito rápido.
    Agora lendo a história de Abelardo – baiano, o infeliz – deu vontade de voltar outras vezes. A cara do blog tá melhor, embora nefasta. O que há faz condizer com teus ditos. Cadáveres, mazela, lembra-me Rubem Fonseca e seus contos sanguinários. Com trema.
    Até uma próxima, contista amigo – ou seria garoto multimídia?

    Beijos ao historiador mais jornalista de campina. Ou talvez jornalista historiador.
    E essa também fica pruma próxima…

  3. Isolda said,

    Ah.. era Adelardo.

  4. desconhecido said,

    as vezes também somos como pré-defuntos e as vezes como médicos medíocres e pior ainda como a esposa do infeliz…que “pre- viu” a própria morte. O pior de tudo é
    que a esposa sim tem esta capacidade de matar antecipadamente com as palavras.

  5. uiliam said,

    gostei muinto . a vida nos enssina um pouca de verdade.

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